Hoje não me apetece!

                                                                                                          (Bruegel - 1560)

Hoje não me apetece!


Hoje não me apetece ir para a escola. Infelizmente tive que ir. Mas vou fazer uma birra, daquelas que tu não aguentas ouvir. Sim, vou-te fazer levar as mãos à cabeça e dizer palavrões em pensamento só porque, hoje, não me apeteceu vir para a escola!


Hoje não me apetece ficar sentada. Eu vou deitar-me quando me apetecer. E vou rebolar pelo chão imaginando que estou a descer a Serra da Estrela. E vou levantar-me. E vou vaguear pela sala… E vou obrigar-te a dizer o meu nome mais vezes do que aquelas em que eu digo o teu. E olha que eu digo o teu muitas vezes…


Mas… desta vez eu tenho uma razão para não querer ficar sentada. É que hoje não me apetece ouvir-te. Estou farta de te ouvir, todos os dias, à mesma hora, no mesmo sítio. E como não te quero ouvir, vou brincar com os legos que estão mesmo atrás de mim. Os legos estão mesmo a chamar-me e têm um discurso simbólico muito mais interessante que o teu! E vou obrigar-te a mudar o sítio do acolhimento só porque, eu, como não te quero ouvir, distraio-me com os brinquedos!


Hoje não me apetece falar. Mas tu tentas. E quase me levas a pensar que eu estou triste, por todas as vezes em que me perguntas “Estás triste?”. Não, eu não estou triste. Hoje, apenas, não me apetece falar. É um direito, ou não?


Hoje não me apetece escrever. E sim, eu gosto de escrever e até escrevo muito bem. Até já escrevo o meu nome à primária (não que eu quisesse, mas tu insististe, disseste que estava preparado). Mas hoje, bem, hoje é daqueles dias em que não me apetece, de todo, escrever. E vou escrever muito mal e vou fazer a letra toda torta e monstruosa e vou-te obrigar a mandar-me fazer tudo outra vez, e outra… e outra… as vezes que forem precisas até perceberes que, hoje, não me apetece escrever. Será que algum dia irás perceber?!


Hoje não me apetece comer. Não tenho fome, simplesmente não tenho fome. Mas tu vais insistir. E vais culpar os meus pais por causa disso. Normalmente dizes que comi imensas “porcarias” em casa e agora não como nada na escola. Mas enganas-te, os meus pais já me ensinaram que não posso comer porcarias. Simplesmente, não me apetece comer.


Hoje não me apetece brincar com os meus amigos. Mas tu não me deixas ficar sozinho. Estás constantemente a dizer aos meus amigos “Vai brincar com ela”. E eles até podem ir ter comigo, mas eu não vou brincar com eles. Por favor, deixa-me em paz. Estou a gostar tanto de ter este momento só meu… e tão só meu. Sabes, não é fácil ter este tempo e espaço quando vivemos com 27 pessoas num espaço tão reduzido e redutor. Hoje não me apetece brincar com ninguém.


Hoje não me apetece emprestar aquele carro que é de todos. Estás sempre a dizer que os brinquedos são de todos e temos de partilhar com os amigos. Temos que partilhar o tanas! Não reparas que eu estou a brincar com ele, que me estou a divertir? Porquê que o tenho de emprestar? Mas o problema não é emprestá-lo, porque eu gosto de partilhar tudo com os meus amigos. O grande problema é: porquê que tenho de emprestar o carro, logo agora?!


Hoje não me apetece fazer o que tu pedes. Mas não é por eu não gostar de fazer, porque até gosto. É só porque és sempre tu a pedir, a exigir, a mandar... e camuflas tudo com um “sugerir”, que fica sempre bem. E eu? E a minha voz? E o que eu quero e o que não quero?


E tu achas que eu sou teimosa. Sim e, às vezes, faço tudo isto apenas por teimosia. Mas, em tantas outras, faço-o porque, definitivamente, não me apetece.


Mas, vou-te confessar… Tu és uma das pessoas mais importantes da minha vida. E, por muito que até não me apeteça fazer, muitas vezes faço o que me pedes, simplesmente, por gostar de ti, num amor sem medida. Eu não te avalio. E não guardo mágoas, mesmo que, dia após dia, me vás fazendo um bocadinho infeliz. E eu nem preciso de muito para ser feliz… basta ter-te comigo e basta que me ouças. Parece-me simples, não achas?


Amanhã não te esqueças de me deixar brincar na terra e correr lado a lado com o vento.

Amanhã não te esqueças de me deixar brincar, simplesmente brincar!



E se em algum dia eu disser “Hoje não me apetece brincar” chama alguém, porque destruíram a minha infância!



Teremos nós a capacidade para interpretar todas as vezes em que as crianças dizem “Não me apetece”?

Temos dado oportunidade para que as crianças possam dizer “Não me apetece”?

Será que conseguimos perceber o “Não me apetece” dito no silêncio?



Porque todas as crianças têm direito a dizer não. O Não é um direito.
Façamos valer os direitos.
Estejamos recetivos ao “Não me apetece”.


Um Educador de Infância,

Fábio Gonçalves

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